26 de janeiro de 2007

mcmatador

sílvio motta era um rapaz ordinário, se não gordo; um ser humano deprimido, se não deprimente. filho único de pais separados, sílvio motta vivia com a mãe em um pequeno apartamento no centro da cidade, sufocado entre outros tantos pequenos apartamentos.

a vida não era fácil para sílvio motta, que padecia de não conhecer problema: não trabalhava ou amava, e as demais relações, volúveis, não o preocupavam. a família o percebia estranho; os homens não o tinham como digno de confiança; as mulheres, quando não o ignoravam, divertiam-se com a sua insegurança. no geral, as pessoas não o levavam a sério. não acreditavam que ele pudesse ser, como posso dizer, infeliz: sílvio motta, como qualquer fracassado, devia ter lá a sua cota de felicidade, diziam. devia gozar ao terminar o joginho no modo mais difícil... ou quando o jornaleiro lhe entregava a edição mensal de seu quadrinho favorito.

é, sílvio motta era um de nós, com suas derrotas e conquistas, seus altos e baixos. apesar de parecer um rapaz infeliz, sem aspirações, desejo, perspectiva... sílvio motta era um de nós.

certo dia, ordinário, deprimente, estava sílvio motta comendo, sentado à varanda de um fast food próximo, quando foi gentilmente abordado por um pedinte, que sugeriu que sílvio motta lhe completasse um sanduíche. sílvio o olhou com indignação: como pode! um homem saudável incomodar as pessoas dessa maneira. o dinheiro que pede na certa é para comprar cachaça, presumiu. o mendigo interpretou o olhar, e o silêncio, como não. agradeceu e saiu. não! voltou. voltou e dissimuladamente espirrou sobre a refeição de sílvio motta. esse fitou novamente o pedinte, e seu semblante foi da indignação, passando pela consternação, até relaxar em um sorriso agradecido. sílvio motta tinha agora uma missão. já não era o rapaz apático, sem vida de outrora.

no dia seguinte sílvio motta voltou à lanchonete, a mesma do dia anterior. e o mesmo pedinte tinha acampamento armado em frente ao estabelecimento. sílvio olhou, mas não encarou. entrou e pediu uma oferta – sanduíche, batata e refrigerante. procurou por uma mesa tranqüila, sentou-se. esparramou na bandeja as batatas, pingou sobre elas dois pacotinhos de ketchup, comeu, intercalando entre um punhado e outro um trago generoso de coca. depois, com estranho cuidado, retirou o sanduíche da embalagem, como se fosse ele, sílvio motta, um funcionário que esqueceu um ingrediente importante e precisa remontar o sanduíche. na seqüência sacou do bolso um vidrinho minúsculo, desses que moças bonitas nos entregam em lojas de departamento com amostra de perfume, tirou a fatia de pão que coroava o sanduíche e salpicou generosamente o veneno.

o fluoracetato de sódio costumava ser um veneno popular no controle de ratos e outras pestes, isso antes de ter o uso restrito pelas autoridades. uma pequena dose, que pode ser facilmente acomodada na ponta do dedo indicador, é suficiente para matar um homem adulto. sílvio motta conhecia outras substâncias igualmente eficientes: ácido arsênico, cianureto, estricnina... conhecimento que adquirira durante as longas jornadas em frente ao computador, quando mergulhava na rede a evitar os demais predadores.

continuando, agora: sílvio salpicou generosa porção de fluoracetato de sódio, completando o recheio do sanduíche. então cobriu-o, devolveu-o a embalagem, levantou-se e saiu. quando abordado pelo pedinte, em frente a lanchonete, sorriu e disse: não tenho trocado, amigo. mas você pode ficar com o meu almoço. tenho mesmo que perder uns quilos!

aquele dia, em sua missão, sílvio motta e seu vidrinho de perfume estiveram em muitas lanchonetes, distribuindo sorrisos e sanduíches.

à noite, de volta ao seu pequeno apartamento, sílvio motta foi surpreendido por uma festa em razão de seu vigésimo sétimo aniversário. família, amigos, penetras... comida, bebida... um belo cenário. mas sílvio motta estava já saturado – muita batata. foi para o seu quarto. a festa continuou sem ele.

sílvio motta sentia-se frustrado em relação a sua vida, mas tinha agora uma causa para distraí-lo. no dia seguinte voltou a sua lanchonete predileta... qual não foi a sua surpresa quando viu o pedinte nas mesma condição de antes, saudável... foi quando começou a tossir, o pedinte, uma tosse forte, escandalosa, e os traços do rosto de sílvio motta esboçaram uma feição alegre. mas a tosse cessou, o pedinte ajeitou-se e, na direção de sílvio motta, lançou: vai abrir mão do almoço hoje, amigo?

sílvio motta não gostou da piada.

tinha ainda o pequeno frasco carregado, pronto. decidido a tirar a prova, pediu uma outra oferta, o especial do dia. mas a segurança que lia no sorriso gaiato do pedinte, do caixa, da garotinha que tinha nariz e lábios lambuzados com maionese lhe tirara a confiança: estaria sílvio motta no caminho certo? procurou não pensar. sentia-se vivo. estava vivo. a insegurança imputada ao longo dos anos havia já lhe privado de muito, de tudo. não ia ceder, não desta vez. mas os olhares delatores, a sabedoria dos pares o incomodava, agora, como nunca. queria matar a todos. excluí-los de sua vida. sem pensar, comeu. morreu.

Um comentário:

Unknown disse...

o "se não", acho que seria "senão"...
Gabriel Garcia Marquez usa muito...
Brás Cubas também tem essa expressão.

Belas fotos e ótima construção de palavras!

a propósito, fiquei sabendo de seu blog pelo aperteoalt.